domingo, 20 de dezembro de 2015

«Brumas e Escarpas» #92

A matança do porco na Fajã Grande

Na década de 1950 a matança do porco na Fajã Grande era um acontecimento de grande relevo, importância, significado e transcendência, dado que para além de ser um dia de convívio e reunião da família e dos amigos, constituía a mais relevante forma de armazenar alimento para todo o ano, nomeadamente para os invernosos meses que se seguiam ao Natal. Daí que se pusesse grande cuidado, empenho e esforço não apenas na sua realização mas também e sobretudo na sua preparação.

Esta começava pouco tempo depois da matança do ano anterior, com a aquisição ou compra do novo bácoro, o qual ficaria em rigorosa engorda durante todo o ano, a fim de que se transformasse em porco e, por alturas do Natal, estivesse o mais gordo e pesado possível. Tempos mais tarde era-lhe colocada uma arcada no focinho para que ele não fossasse e assim se alimentasse melhor e não destruísse o curral onde ia crescendo e engordando com as lavagens e restos da cozinha e ainda com milho, couves e com batatas brancas e doces.

Nos meses e dias mais próximos do Natal, no entanto, muitas outras eram as tarefas realizadas a fim de que nada, mas mesmo nada, faltasse no dia atempadamente agendado. Era necessário ceifar e acarretar muita cana roca, não só para enxugar o curral mas também para colocar debaixo das postas de carne depois do porco estar estraçalhado. Se a cana roca não fosse suficiente para secar o curral recorria-se aos milheiros. Outra tarefa que ocupava uns bons dias inteirinhos era a de ir ao Mato cortar uma grande quantidade de queirós, as quais eram acarretadas em molhos às costas até à beira do cimo da Rocha, sendo atiradas no arame da Ribeira cá para baixo e depois trazidas para casa onde eram postas a secar. Só então estavam prontinhas para o chamusco.

Não havia matança que se prezasse cujas refeições não incluíssem inhames. Daí que se cultivassem sempre alguns com uma adequada programação, de maneira a que estivessem prontos a ser apanhados por altura da matança, o que resultava em muitos outros dias de trabalho árduo e cansativo. Outra tarefa espinhosa mas necessária era a de arranjar a lenha suficiente para cozinhar no dia da matança, para derreter os torresmos e, dias depois, para afoguear a linguiça. Eram quantidades excessivas de toros de faia e de incenso, acarretados aos ombros ou em corções que depois tinham que ser serrados, cortados e fendidos, sendo posteriormente postos a secar, empilhados e arrumados em lugar que não apanhassem chuva. Era preciso também semear e cultivar as cebolas e o cebolinho, cuja rama era necessária para as morcelas. Finalmente na véspera amolavam-se as facas e as raspadeiras. Estas eram feitas com pedaços de corda de relógio presos em semicírculo a cabos feitos de pedacinhos de madeira. Era necessário ainda preparar muitas outras coisas que não podiam nunca falhar, como: lavar as salgadeiras e o alguidar para aparar o sangue, lavar a mesa, arranjar as cordas, preparar os temperos, fazer queijos, manteiga e doce, cozer muito pão, incluindo pão de trigo que era “obrigatório” nas matanças, apanhar os limões e as laranjas azedas para lavar as tripas, comprar muito sal, uma garrafa de aguardente Cinco Estrelas e uma outra de traçado e, sobretudo, não dar comida ao porco na véspera da matança.

No dia da matança era necessário levantar cedo, mesmo muito cedo, ainda noite escura. Antes de realizar qualquer tarefa e à medida que os familiares e outros convidados iam chegando, almoçava-se. A mesa era lauta nesse dia: tigelas e tigelas bem cheias de café, que havia sido moído na véspera, com leite, açúcar e pão de trigo com manteiga, queijo e doce.

De imediato começavam as tarefas. As mulheres preparavam o alguidar para aparar o sangue. Os homens abriam o portal e, por vezes depois de várias tentativas infrutíferas, apanhavam o porco e amarravam-no pelo focinho, enquanto ele guinchava e tentava esquivar-se, ingloriamente. De seguida tiravam-no do curral e conduziam-no para junto da mesa já devidamente preparada. Uma vez deitado em cima da mesa, o suíno era amarrado de pés e mãos e preso pelos homens que se colocavam ao redor da mesa, uns a aguentar-lhe os pés e as mãos, outros o rabo e outros a cabeça, enquanto o matador, depois de lhe lavar o cachaço muito bem lavado, lhe enfiava a faca que devia ir certeira ao coração, a fim de que morresse de imediato e expelisse a maior quantidade possível de sangue, o qual era recolhido e muito bem mexido dentro do alguidar, segurado por duas mulheres de avental novo ao peito.

Seguia-se o chamuscar. Feita uma fogueira nela se acendiam ramos e ramos de queirós que, a arder em grandes labaredas, eram lançados sobre o porco queimando-lhe todo o pêlo, enquanto um cheiro a chamusco e a pêlo queimado subia pelos ares e anunciava que ali havia matança. Com uma maior dosagem de lume e calor eram-lhe retiradas as unhas. Para se aquecerem “por dentro” que por fora já o estavam, os homens iam bebendo cálices de Cinco Estrelas e de traçado. Depois o porco era raspado de uma ponta à outra com as raspadeiras, em seguida, lavado com água e sabão e esfregado com grossas pedras e escovas, ficando alvo como a neve. Por fim era barbeado com facas muito bem amoladas e com lâminas de barba nas partes mais rugosas e recônditas, sendo novamente muito bem lavado. Sempre que o porco era virado para ser lavado de um outro lado a mesa também era muito bem lavada e esfregada.

Finalmente o porco era colocado em cima da mesa de costas para baixo e pernas para o ar e era aberto a fim de se lhe tirarem as vísceras, aproveitando-se apenas o coração, o fígado, a língua e as tripas. Os bofes e os rins eram enterrados ou dados aos gatos.

Com o coração e o fígado e alguns pedacinhos de carne fazia-se a caçoila, que seria o jantar daquele dia, acompanhada de inhames, escaldadas e pão de trigo. Por sua vez as tripas eram despegadas umas das outras e guardadas em cestos forrados com panos de maneira a não secarem, a fim de que mais tarde fossem muito bem lavadas na Ribeira. A bexiga era dada às crianças para jogarem à bola e a língua salgada e guardada para oferecer às Almas do Purgatório, sendo arrematada no adro, num dos domingos seguintes.

Durante o almoço o porco normalmente ficava pendurado pelo focinho para escorrer os líquidos e arrefecer, aos tirantes da cozinha ou duma casa velha, da loja ou até ao ar livre, numa armação adequada, feita com paus em cruz.

De tarde voltava-se ao trabalho. O porco era aberto pelas costas e partido em duas metades, sendo depois desmanchado. Era-lhe retirado a parte com o toucinho, destinada aos torresmos, pedacinhos de carne da barriga com gordura para as morcelas, a carne para os bifes e para a linguiça e as orelhas e os ossos para salgar. A carne assim partida era colocada ao ar, em cima de folhas de cana roca, para arejar. Às crianças era atribuída a honrosa tarefa de vigia a fim de enxotar os gatos e impedi-los de se atiraram às postas de carne fresca.

As mulheres, sobretudo as mais novas e as raparigas iam lavar as tripas para a Ribeira. Regressavam a casa e voltavam a lavá-las muito bem lavadas, viravam-nas e reviravam-nas por dentro e por fora, voltavam a lavá-las, esfregando-as com folhas de cebola, farinha, sal, salsa, laranjas azedas, água morna para que ficassem muito bem limpinhas. O bucho também era rapado e muito bem lavado, pois geralmente tinha destino igual ao das tripas grossas, com as quais se faziam as morcelas enchidas com pedacinhos de carne, arroz cozido, muita cebola e cebolinho refogados e temperos variados: canela, cominhos, noz moscada, cravo-da-índia, sal e malaguetas. As morcelas eram cozidas juntamente com os pés e constituíam a ceia, na qual participavam apenas as pessoas da casa e uma ou outra mais chegada ou amiga.

Os dias subsequentes ao da matança também eram de grande azáfama, sobretudo para os donos da casa. No dia seguinte salgava-se uma parte do porco, nomeadamente os ossos da coluna e das pernas, as orelhas e a cabeça. Era uma tarefa que só os mais velhos e experientes sabiam fazer: é que os pedaços do porco tinham que ser todos muito bem passados pelo sal a fim de não se deteriorarem. Depois de salgados eram guardados numa ou mais salgadeiras, geralmente feitas de barro. As mulheres faziam enormes fogueiras sobre o lar, por vezes até ao ar livre, onde se colocavam grandes caldeirões ou tachos dentro dos quais era derretido o toucinho, com o duplo objectivo: fazer os torresmos e obter a gordura resultante do “derreter” para nela, mais tarde, se guardar a linguiça. A carne destinada a estas era posta numa calda ou salmoura devidamente temperada, na qual se colocava um ovo para testar se a quantidade do sal era necessária e suficiente, o que acontecia quando um ovo, colocado lá dentro, vinha ao de cima. A carne ficava ali a marinar durante três ou quatro dias, devendo ser virada e revirada vezes sem conta a fim de que toda ela apanhasse bem o sal e os temperos.

Passados três dias enchiam-se as linguiças com a carne assim temperada e que antes era partida e picada em pedaços pequenos e lascados a que se juntavam cominhos moídos e em grão e outros temperos, sendo depois enfiada no interior das tripas finas, com “engorladeiras” feitas de lata. Colocadas em cima de tábuas, eram todas e cada uma picadas de ponta a ponta e de um lado e outro, com uma agulha de coser em cujo fundo se enfiava um bom pedaço de linha dobrado uma ou mais vezes, não fosse a agulha escapulir-se pela tripa dentro e perder-se entre os pedacinhos de carne. Uma vez cheias, bem apertadas e fechadas nas extremidades, geralmente com pedacinhos de pau, as enormes tripas agora recheadas com a carne e os temperos, eram penduradas no “pau das linguiças” e afogueadas no lar durante vários dias. Os três primeiros dias eram muito importantes, pois tinha que se lhes dar o calor necessário e adequado e que era controlado não apenas pela maior ou menor quantidade de lenha que se ia metendo no lume mas também pela subida ou descida do pau, a fim de que o calor que lhes era dado não fosse de mais ou de menos. Além disso, as linguiças eram viradas de vez em quando, voltando-se necessariamente para cima o lado que estava sobre o pau, para que este também apanhasse lume e calor e toda a linguiça adquirisse a mesma cor alourada. Finalmente baixava-se o pau e as linguiças eram colocadas na beira do lar, para apanhar apenas o calor resultante do brasido. Ao mesmo tempo que se afogueavam as linguiças colocavam-se as morcelas nas extremidades do pau, a fim de secarem melhor.

Uma vez bem afogueadas, as linguiças eram retiradas, lavadas, partidas aos pedaços e colocadas debaixo de banha, em vasilhas geralmente de lata, sendo a sua prova realizada no dia de Ano Bom.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

Sem comentários: