terça-feira, 13 de outubro de 2015

Ilha das Flores à mercê do tempo (I)

Foi, antes de mais, um jogo do gato e do rato com as nuvens. Tínhamos muita vontade de ver as lagoas que são dos principais ex-líbris das duas ilhas do grupo ocidental mas precisámos de paciência e persistência.

Pelo meio percebemos que há mais vida para além das lagoas e encontrámos lugares belíssimos, onde a vida corre devagar - e que pedem, por isso, estadias a condizer. Sem pressas, com tempo para aprender a ver.

E mais um cliché, que o povo nunca se engana: quem espera sempre alcança. Nós esperámos, por vezes desesperámos, mas ao quarto dia a ilha das Flores colaborou e mostrou-se aos nossos olhos de principiantes. Já tínhamos a vista cheia de pastos verdes, de hortênsias azuis e rosadas, de fajãs dramáticas a cair para o mar, de montes a recortar o céu carregado - mas faltava-nos a (quase) fantasmagoria das lagoas para compor o cenário perfeito. Como num passe de magia, a escassas horas de levantarmos voo, a névoa levantou-se também e deixou-nos entrar no reino encantado da lagoa Funda e da Rasa, da Negra e da Comprida, da Lomba e da Branca.

Aterramos na ilha das Flores debaixo de chuva, mas é de calor quase tropical esta manhã de Agosto em Santa Cruz. Quem se estreia num lugar tem o péssimo hábito de querer abarcar tudo ao primeiro olhar, mas percebemos logo que aqui as regras são outras. É preciso saber esperar e é isso que vamos aprender nos próximos dias.

Por enquanto vamo-nos familiarizando com Santa Cruz das Flores, a vila primeiro, o concelho depois (3789 habitantes, contaram os Censos 2011). Na Avenida dos Baleeiros, o Buena Vista Caffé, com vista de mar privilegiada, está com pouca freguesia. Contamos apenas duas mesas ocupadas - numa delas, duas mulheres francesas, mãe e filha, talvez, estão a ler e dir-se-iam indiferentes ao contexto. Daqui a nada, porém, é vê-las descer as escadinhas que levam às piscinas naturais de Santa Cruz e entrar na água tépida que se abriga entre as rochas. Devidamente equipadas com óculos de mergulho, vão passar vários minutos a nadar com os peixes - e a fazer inveja a quem as vê de cima. As piscinas, não temos dúvidas, serão um dos principais cartões-de-visita da vila onde vivem 1724 florentinos.

Que, no entanto, parecem estar todos sabe-se lá onde. Percorrendo as ruas de Santa Cruz em redor da Igreja de Nossa Senhora da Conceição (fechada aquando da nossa visita, para obras de recuperação do interior), não nos cruzamos com muitos locais. Há mais turistas - ainda assim poucos e a esta hora, perto da uma da tarde, concentrados na esplanada da Praça Marquês de Pombal. São sobretudo espanhóis - sabemo-lo porque falam alto e riem-se com vontade, praticamente indiferentes à chuva que recomeçou a cair. Com a igreja em obras e o Convento de São Boaventura, que alberga actualmente o Museu das Flores, fechado (pelo menos a esta hora), não temos muito mais para fazer além de ver a vila acontecer. De tão pacata, Santa Cruz é um daqueles lugares onde se pode andar no meio da rua ou até deixar o carro aberto enquanto se vai ao café. Já não será tanto assim, mas de repente lembramo-nos de Raul Brandão - e mais tarde consultamos «As Ilhas Desconhecidas», que trouxemos na bagagem: "Vejo às janelas, por dentro das vidraças, fisionomias tristes de velhos que estão desde que se conhecem à espera de quem passa - e não passa ninguém."

Uma voltinha à vila há-de ficar completa com paragem no Centro de Interpretação Ambiental do Boqueirão, construído nos tanques onde se armazenava o óleo que era derretido na Fábrica da Baleia. Foi inaugurado em Novembro de 2009 e, convidando a um mergulho pelos mares dos Açores, pode ser uma boa ideia para ocupar os miúdos em dias que desaconselhem grandes jornadas ao ar livre. O espaço não é muito grande, mas tem informação detalhada sobre a fauna e flora do arquipélago, mais concretamente da ilha das Flores.

E é a ela que nos vamos fazer agora - mesmo que as nuvens que vemos lá em cima não augurem nada de bom. Arriscamos, ainda assim, e já subimos em direcção ao Pico da Casinha. Estamos a mais ou menos 400 metros de altitude, informa Marco Melo, da empresa de turismo de aventura WestCanyon, que nos acompanha nesta viagem pela ilha das Flores, e começamos a sentir na pele (literalmente) o cliché que dá conta que nos Açores é possível ter as quatro estações num dia. Saímos do Verão de Santa Cruz e agora estamos praticamente no Inverno - e isto ainda é Santa Cruz.

Queremos acreditar que deste Pico da Casinha há realmente vistas fantásticas sobre o vale da Fazenda de Santa Cruz, mas esta névoa que nos persegue à medida que subimos deixa ver pouco para além do que temos imediatamente à frente dos olhos: muros forrados a hortênsias a delimitar os terrenos verdinhos, mais vacas do que pessoas e um silêncio quase fantasmagórico. Há outro miradouro ao virar da esquina - Arcos da Ribeira da Cruz, nas proximidades da qual se terão fixado os primeiros povoadores da ilha no século XV - mas parar aqui serviria de pouco. "As nuvens nos Açores têm uma vida extraordinária", diz Raul Brandão no livro que nos acompanhará ao longo de toda esta jornada açoriana - e não podíamos estar mais de acordo.

Já percebemos que daqui não levamos nada, nem por sombras conseguiremos avistar as sete lagoas que são uma das imagens de marca da ilha das Flores. Descemos, portanto, e vamos fixar-nos mais perto do mar, onde as nuvens não parecem ter tanta vida. Antes, porém, paragem no miradouro do Portal: a Fajãzinha é uma manta de retalhos de campos verdes molhados de orvalho e tem a Aldeia da Cuada por cima; a cascata da Alagoinha, talvez o maior spot da ilha das Flores, hoje não dá mais a ver do que uns risquinhos esbranquiçados na rocha de vegetação compacta; lá ao fundo, a Fajã Grande e o ilhéu de Monchique, perdido no Atlântico.

É para lá que vamos agora, para a Fajã Grande, já nas Lajes das Flores, que exibe com orgulho o título de concelho mais ocidental da Europa. Foram-se as nuvens e voltamos a entrar no Verão. Junto ao mar, a Fajã Grande mais não é do que uma evocação da geografia. É na ilha das Flores que acaba a Europa e começa a América e isto, só por si, vale muito. Quem não gosta de dizer aos amigos que já esteve no ponto mais ocidental da Europa? Que tecnicamente é, no entanto, o ilhéu de Monchique, um rochedo isolado no mar.

É também na Fajã Grande que tem morada o Poço do Bacalhau, uma cascata que desagua na lagoa com o mesmo nome e que no Verão funciona como complemento ao mar. Nós, porém, não trocamos as águas azul-turquesa por nada deste mundo e deixamo-nos ficar por aqui. Mesmo que apenas deitados em cima do muro a ouvir o barulho das ondas. Não se está nada mal, neste ponto mais ocidental.


Notícia: suplemento «Fugas» do jornal «Público».
Saudações florentinas!!

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