domingo, 22 de março de 2015

«Brumas e Escarpas» #86

As lagoas da Fajã Grande

- Ainda haverá lagoas na Fajã Grande? – perguntei a alguém, há uns tempos atrás, mas ninguém me soube responder.

É convicção minha, porém, que já não deve haver. Mais, estou em crer que muitos dos actuais habitantes da Fajã Grande, sobretudo os mais novos, não saberão o que eram nem para que serviam as lagoas supracitadas no título em epígrafe, cuidando talvez que o mesmo se refira às caldeiras do mato, também designadas por esta palavra. Mas não. Não é a essas lagoas que me refiro. A pergunta acima formulada diz respeito a outras lagoas. De contrário a questão inicialmente expressa não teria sentido.

O que eram então as lagoas? Eram relvas que ou tinham uma ou mais nascentes de água ou beneficiavam de regos através dos quais captavam a água das lagoas vizinhas ou de alguma ribeira ou grota que por ali passasse. Num e noutro caso a água espalhava-se por todo o terreno, tornando-o um autêntico pântano que proporcionava condições ideais para que a erva crescesse fresca e tenrinha, geralmente misturada com inhames e com agriões, uns e outros de muito boa qualidade. Devido às condições pantanosas do terreno e à sua especificidade esta erva não podia em nenhum caso ser pastada pelos bovinos, antes teria que ser ceifada com foice de mão e trazida para as manjedouras. Este ceifar da erva, no entanto, era um trabalho árduo, difícil, cansativo e moroso. Primeiro porque tinha que ser efectuado de madrugada, antes do Sol nascer para que a erva se mantivesse fresquinha. Segundo porque a ceifa, como o terreno era alagadiço, tinha que ser feita de cócoras e de botas de borracha ou descalço mas com as calças arregaçadas até ao joelho. Terceiro porque tinha que se ceifar apenas um molho por dia porque a dita cuja não era muita e constituía uma espécie de dieta para as vacas parturientes e leiteiras ou para o gado de engorda e, por isso, não era acarretada em carro ou corção mas às costas, toda molhada e a pingar água sobre os ombros de quem a acartava, pese embora muitas vezes os homens se protegessem dos pingos da água com uma froca de “angrim” sobre os ombros ou com uma saca de serapilheira em forma de capuz, enfiada na cabeça. Anos mais tarde surgiram as gadanhas, umas foices gigantes, manejadas em pé, com ambas as mãos e consequentemente mais rápidas mas muito perigosas e mais caras, pelo que não eram acessíveis a todos.

Um outro obstáculo tornava ainda mais árdua e espinhosa esta tarefa matinal. É que a maioria das lagoas se situavam bastante longe das casas e dos palheiros onde estava o gado, pois ficavam junto à Rocha, onde havia nascentes de água. Havia lagoas nos seguintes lugares: Covas, Ribeira das Casas, Águas, Ribeira, Figueira, Silveirinha, Paus Brancos e Alagoinha. Muitos homens e rapazes na realização desta tarefa apanhavam doenças graves, geralmente reumáticas e dos ossos. O uso das botas de borracha era bastante prejudicial à saúde e, por vezes, a água no terreno era tanta que chegava a encher as botas. Os que ceifavam descalços, geralmente em jejum, ainda estavam sujeitos a mais doenças. A posição de cócoras para poder manejar a foice com uma mão e apanhar a erva com a outra durante uma hora ou duas, para além de eventualmente provocar cortes nos dedos, era malévola para a coluna e acarretar um molho de erva às costas, pesado como chumbo, carregadinho de água a penetrar pelo pescoço abaixo e a chegar até aos tornozelos também não era deliciosa nem saudável tarefa. Acrescente-se que esta actividade era realizada em jejum e antes de se iniciar um dia normal de trabalho agrícola e rural.

Ainda hoje me recordo de ver dezenas de homens, antes do Sol nascer, a deambular pelas ruas da Fajã, todos alagados, vergados ao peso de um enorme molho de erva a escorrer água. Caminhavam lentamente, com a foice enfiada na erva, a mão esquerda a segurar o molho na parte inferior do qual espetavam um bordão que apoiavam no ombro direito como se fosse uma espécie de alanca para aliviar o peso e sobre o qual pendia a mão direita. Muitos deles, os mais pachorrentos, traziam pendurados no bordão, num balouçar rimado pelas lentas passadas e amarrado com um fio de espadana, um molhinho de agriões que haviam escolhido entre a erva e que, juntamente com uma talhadinha de toucinho, fariam uma deliciosa sopa para a ceia.

Vida dura a dos nossos antepassados!


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

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