quinta-feira, 17 de abril de 2014

«Brumas e Escarpas» #73

A Semana Santa na década de 1950

Em todas as freguesias e localidades açorianas, na década de cinquenta, a Semana Santa era considerada uma semana diferente, um tempo de grande e profunda religiosidade, verificando-se, durante a mesma, importantes e significativas alterações, não apenas na forma de celebrar a fé cristã mas também na vida e nos costumes quotidianos, inclusive na própria alimentação.

Na Fajã Grande, as celebrações litúrgicas desta semana iniciavam-se no Domingo de Ramos, com a bênção dos ramos realizada na Casa de Espírito Santo de Cima. O pároco transportava uma palma, assim como uma ou outra pessoa que possuísse palmeira nos seus campos, o que era raro. A generalidade das pessoas transportava pequenos ramos de salgueiro, de alecrim ou de cedro. Acreditava-se que os ramos deviam ser guardados, a fim de serem queimados na Quarta-Feira de Cinzas do ano seguinte. Terminada a bênção seguia-se uma procissão com destino à igreja, numa atmosfera mística e de oração que envolvia toda a freguesia. Na igreja era celebrada a missa, nesse domingo muito demorada, uma vez que ao evangelho era feita em latim (língua então utilizada em todas as celebrações litúrgicas) a leitura da paixão de Jesus Cristo, segundo São Mateus. Nessa altura, os paramentos utilizados, assim como o frontal do altar-mor e o véu de cobertura do sacrário eram de cor roxa. Desde o domingo anterior, chamado na altura Domingo da Paixão, todas as imagens de santos existentes na igreja eram cobertas com panos roxos ou pretos ou, no caso das mais pequenas, guardadas na sacristia e as flores eram retiradas dos altares, assim como as sanefas e as cortinas das janelas. A partir desse domingo os sinos não repicavam, apenas dobravam ou davam badaladas espaçadas umas das outras. Nas segunda, terça e quarta-feira realizava-se a Via Sacra. A partir da quarta-feira da Semana Santa, o sino deixava de tocar, sendo as trindades, o toque do meio-dia e outros anunciados pela matraca, um instrumento construído em madeira, formado por três tábuas pregadas umas nas outras e com um suporte manual na parte superior, como se de uma pequena caixa se tratasse. Na parte exterior das tábuas estavam cravadas várias argolas de ferro que se soltavam batendo em conjunto e de forma violenta e agressiva na madeira, logo que a dita cuja fosse abanada com alguma força e agilidade, produzindo assim um som barulhento, matracado, estranho e esquisito.

Na quinta-feira à noite, a igreja voltava a ser enfeitada e os altares eram revestidos de branco, sendo celebrada a missa da Ceia do Senhor, durante a qual tinha lugar a cerimónia do lava-pés, para a qual eram convidados doze homens, dos mais influentes e importantes na freguesia. No coro tentava-se adivinhar qual deles seria o Judas... E os candidatos eram vários... Terminada a missa eram retiradas as toalhas do altar e exposto o Santíssimo que assim ficava durante toda a noite até à madrugada seguinte, velado em turnos de uma hora.

Na sexta-feira a comemoração da morte de Jesus era celebrada às três da tarde, através das chamadas “endoenças” mas realizadas na igreja Matriz da freguesia vizinha, a Fajãzinha, às quais no entanto assistiam muitas pessoas da Fajã, que para aquela freguesia se deslocavam com tal intuito. As cerimónias das “endoenças”, na Fajãzinha, eram muito concorridas, a elas vinha muita gente de outras freguesias e exigiam, para além de três padres, alfaias litúrgicas adequadas e paramentos pretos e roxos, incluindo dalmáticas que a igreja da Fajã não possuía. À noite, porém, realizava-se na Fajã a procissão do Senhor Morto. No altar da Senhora do Rosário havia um grande crucifixo, com um Cristo amovível. Era retirado da cruz e colocado num andor em forma de esquife e seguia na procissão juntamente com a cruz da qual se pendurava um pano e com a imagem da Senhora da Soledade, a única existente na Fajã que vestia roupas e que, por isso, estava interdita de estar na igreja durante o ano. Homens com opas, transportando lanternas, a cruz e o pálio debaixo do qual seguia o pároco levando o Santo Lenho. O povo incorporava-se atrás e apenas o batucar da matraca se alternava com o silêncio da noite.

No sábado, às oito horas era celebrada a missa da Vigília Pascal, mas muito simplificada, como se de uma missa normal se tratasse, apenas com a bênção do lume e do círio pascal, os sinos voltavam a tocar, os santos eram descobertos e a igreja enfeitadas. No domingo apenas a missa, onde a palavra aleluia se ouvia com muita frequência.

Durante a Semana Santa devia-se jejuar e não comer carne, sacrifícios nada difíceis pois isso fazia parte do quotidiano. Na Sexta-feira Santa ao almoço devia comer-se sopa de funcho. Nesse dia o funcho era mais doce, pois Nossa Senhora também o comera, quando carregando sofrimento e dor subia o caminho do Calvário. No sábado coziam-se os folares recheados com ovos e linguiça para se comerem no domingo e nos dias seguintes.

Durante a Semana Santa não se devia namorar, cantar, dançar, assobiar ou gozar outros pequenos prazeres, por serem sinais de alegria e gozo uma vez que Nosso Senhor passara toda a semana sofrendo.


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

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