quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Ilha das Flores: um mundo de sonho

Visito as Flores como acho que devem ser visitadas todas as ilhas dos Açores: de barco, de carro, a pé, com tempo e disponibilidade...

Por ser varanda sobre o mar, os viajantes do século XIX deram a esta ilha denominações como Jardim do Atlântico ou Suiça Açoriana – muito por via da beleza estonteante das suas sete lagoas: Rasa, Funda, Comprida, Negra, Seca, Lomba e Branca. No Verão de 1924 o escritor Raul Brandão, na visita que efectuou pelos Açores, permaneceu alguns dias na ilha das Flores e deu-lhe o nome de “A Floresta Adormecida”, título de um dos melhores capítulos do seu livro «As ilhas Desconhecidas», publicado dois anos mais tarde.

Situada na denominada placa litosférica americana, ilha agreste e selvagem, de extraordinários contrastes, uma paisagem irrepetível, uma Natureza intacta e em estado puro – as Flores são, hoje, para mim, a mais espetacular e a mais fascinante das ilhas açorianas. Tudo nela é grandeza e assombro: baías profundamente recortadas, falésias cortadas a pique, relevos incríveis, colinas arredondadas, vales fundos e abruptos, crateras imensas, ilhéus pontiagudos, rochas colossais, lagoas de sonho... E tudo isto enquadrado por densa vegetação com todas as tonalidades de verde.

A expressão telúrica desta ilha está precisamente nestes declives e nestes planaltos íngremes e imprevisíveis. E não existem palavras que possam adjetivar as furnas, as grutas e as cavernas que apreciei a navegar ao largo dos Cedros, Ponta Delgada e Ponta Ruiva. E que dizer da imponente Rocha dos Bordões? E do imenso silêncio das fajãs? E do verde-claro dos pastos iluminados por uma luz fria e delicada?

Por toda a parte irrompem sebes de hortênsias em flor (que dividem os campos) e o amarelo perfumado das cana-rocas (noutras ilhas também conhecidas por rocas-de-velha, conteiras ou palmitos). Acima de tudo, é impressionante a abundância de água na ilha das Flores, onde existem cerca de 400 ribeiras. Mais deslumbrante ainda é a água que se precipita lá de cima das encostas, e continuamente tomba em fios esbranquiçados de cascata, despenhando-se cá em baixo e desfazendo-se numa névoa de gotas líquidas... Mas uma ilha é também feita de gente. E os florentinos têm a candura e a generosidade dos ilhéus acolhedores e hospitaleiros, que vivem com persistência numa relação única e harmoniosa com a Natureza.

A caminho da Fajã Grande, detenho-me junto de um ancestral moinho de água (datado de 1862) que ainda mói pelos meios mais rudimentares e artesanais. Meto conversa com Fátima, a moleira que me parece saída das páginas de um conto de Trindade Coelho. Ela não tira os olhos do grão, seguindo a moenda com toda a calma do mundo. O monótono barulho das mós transporta-me ao passado. Momentos antes eu já havia experimentado tal regresso ao passado ao visitar as casas de pedra da Aldeia da Cuada, onde tudo é rural e arcaico, incluindo o nome da co-proprietária daquele espaço rústico: Teotónia.

Vou captando sucessivas imagens fotográficas. De miradouro em miradouro, rendo-me por inteiro à beleza luxuriante desta ilha que é a mais cabalística dos Açores: tem 7 lagoas, 7 baías e 7 vales. De Santa Cruz às Lajes, e daqui até ao Morro Alto, os meus olhos deslumbrados contemplam todas as espécies de árvores: incenso, faia, loureiro, acácia, giesta, pinheiro, criptoméria, araucária, metrosídero, plátano. E, pelos trilhos da ilha, vejo manchas de laurissilva e cedro do mato e, com menor expressão, outras endémicas: sanguinho, pau branco, vinhático e queiró. E as trufeiras possuem a macieza do veludo. E no Poço da Alagoinha percorro os 800 metros que me transportam às regiões mais fantásticas do paraíso terrestre! E a mesma sensação assalta-me ao visitar o Poço do Bacalhau. Grandeza tamanha para uma ilha tão pequena. Percebo agora melhor os versos de Roberto de Mesquita e de Pedro da Silveira.

O mar sempre à volta. A ilha do Corvo no horizonte. Vejo no monitor da máquina fotográfica as imagens que vou captando. No fundo do vale da Fazenda de Santa Cruz, a igreja de Nossa Senhora de Lourdes empresta uma nota poética e mística à paisagem. E como é belo o casario branco a despontar no verde bucólico do Mosteiro! Na Fajã Grande, olho o ilhéu de Monchique e sei que estou no ponto mais ocidental da Europa.

Coelhos furtivos atravessam-se à frente da viatura que aluguei para visitar a ilha durante uma semana. Conduzo pelo silêncio de caminhos desertos e sou surpreendido pelas turísticas quatro estações num só dia. Boa rede de estradas. Curvas e contracurvas até dizer chega. Está um calor abafadiço na Caveira. A paisagem é casta e melancólica no Lajedo. Ambiente pastoril e idílico na Fajãzinha. Vejo campos de milho na Lomba e inhameiros na Fazenda das Lajes. E, por todo o lado, ouço o canto dos pássaros e o som das ribeiras e das cascatas.

Em 2009 a UNESCO reconheceu a importância ambiental da ilha das Flores, integrando-a na Rede Mundial de Reserva da Biosfera.
E depois há o gado bovino. Deixadas ao frio e ao nevoeiro à beira da estrada ou nos morros mais inóspitos, as vacas (brancas, pretas, malhadas e vermelhas charolesas) olham-me com desprezo. A terra está empapada de humidade e paira no ar um cheiro a mentrasto e uma impressão de frescura, de calma, de volúpia. Serenidade e melancolia. E um verde que pacifica o meu espírito. Venha o(a) leitor(a) ver tudo isto com os seus próprios olhos. Porque, garanto, nada do que aqui escrevi é literatura.


Artigo de opinião de Victor Rui Dores, no suplemento literário «Artes & Letras» do jornal «Terra Nostra», na última edição de 27 de Setembro.
Saudações florentinas!!

2 comentários:

Anónimo disse...

Esta leitora foi e agora está a braços com um problema, porque desde o primeiro minuto senti-me lá como se fosse a minha casa. E desde que regressei ao continente, sinto saudades das "minha" ilha das Flores como se fosse a minha terra, como se um grande bocado de mim tivesse lá ficado.
Amo de paixão esse bocadinho de terra lançado ao mar...

Virginia

Anónimo disse...

Saudades, desse pequeno pedaço de paraiso :/