sábado, 22 de setembro de 2012

«Brumas e Escarpas» #48

O cascão das papas

Na Fajã Grande, até às décadas de 1950 e 1960, casa pobre que se prezasse não havia de comer pão bolorento. Por isso às quintas-feiras, véspera da nova fornada, geralmente era dia de papas. O pão de milho, que juntamente com o leite era a base da alimentação à altura, era cozido à sexta-feira, no meio de grande alvoroço e enorme azáfama. A maior parte das vezes porém, sobretudo no Verão, na quarta-feira seguinte já estava rijo que nem um corno e na quinta-feira sabia a bolor que tresandava e já não se podia comer. A ceia, nesse dia, era constituída por leite e papas de milho.

As papas eram cozidas com água e farinha, a que se misturavam umas pedrinhas de sal, em vetustos e tisnados caldeirões de ferro, postos em cima de uma grelha, debaixo da qual ardia um lume feito de garranchos de incenso e achas de faia. Logo que a água iniciava a fervura, o que demorava o seu tempo dada a dificuldade em fazer pegar o lume, era certo e sabido: uma mão na colher de pau, outra com punhados de farinha de milho que, lentamente, se iam deixando cair sobre a água em ebulição, logo mexida com a colher, não fosse criar “grumos” ou pegar-se ao fundo. Depois de baldeada toda a farinha, que antes havia sido muito bem peneirada, iniciava-se uma cozedura lenta, mas por vezes açulada por algumas irrefreáveis labaredas de lume, provocando incontroláveis oscilações térmicas, que faziam com que as papas se apegassem ao fundo do caldeirão, onde se ia formando, lenta e demoradamente, um enorme e parcialmente queimado cascão. Retiradas depois de prontas, as papas eram colocadas em pratos à espera de arrefecerem (elas eram boas frias e regadas com o leite a ferver), mas ficava ali, no fundo do caldeirão vazio, um enorme cascão resultante do apegar-se contínuo e permanente da farinha ao longo de todo aquele lento e demorado processo de cozedura. Retirado com cuidado, com uma colher de pau, de forma a sair inteirinho, o cascão parecia uma enorme bolacha, excepto em doçura, constituindo o aperitivo preferido dos fedelhos da casa, que lutavam por um nica dele como se bolo doce se tratasse. E não é que os adultos, se pudessem ou apanhassem uma vaga, também se atiravam desalmadamente ao cascão das papas!


Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

Sem comentários: