quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

«Brumas e Escarpas» #31

A Fajã Grande: uma povoação de estrutura semelhante à dos burgos medievais ou a excelência da Rua Direita sobre as restantes ruas

Na Idade Média, os burgos ou cidades tinham uma estrutura influenciada, por um lado, pela enorme força e poder da Igreja e, por outro, pelo feudalismo reinante, caracterizado por uma forte ligação e dependência da propriedade agrícola ou da terra, cuja posse significava não só riqueza mas também poder. Assim os tradicionais burgos medievais organizavam-se à volta da catedral, onde pontificava e governava o bispo e para ela se orientavam todas as ruas e vielas. Mas era também ao redor da Sé e do Paço Episcopal que se concentravam as habitações mais ricas e luxuosas, pertencentes aos senhores de “pendão e caldeira”, ou seja aos nobres e ricos homens, donos das terras e do povo, que assim, sobretudo por interesses políticos, se agregavam e associavam ao poder episcopal. Mais afastados da catedral e já na periferia da cidade ficavam os casebres dos mais pobres, pertencentes ao povo, onde se incluíam os artesãos, os almocreves, os feirantes e os prestadores de outros serviços e, já nos arrabaldes, ou até fora das portas da urbe, ficavam os paupérrimos tugúrios dos servos da gleba, ou seja dos pobres camponeses que trabalhavam os campos dos nobres como escravos e a quem as portas da cidade apenas se abriam para irem levar os géneros agrícolas aos seus senhores ou para se defenderem em tempo de guerra, dado que a isso os nobres eram obrigados.

Recordando a estrutura geográfica da Fajã Grande, nos anos cinquenta, é fácil constatar que a disposição das habitações era, de algum modo, semelhante à dos burgos medievais, ou seja, a igreja estava situada precisamente no centro do povoado e à sua volta, formando a Rua Direita, as casas maiores e mais luxuosas, se é que se poderia falar em luxos, pertencentes às pessoas mais ricas ou com mais propriedades. É curioso verificar que, embora muitos dos seus moradores possuíssem gado e tendo as casas primeiro andar e rés-do-chão, ou até lojas anexas, nenhum habitante da referida rua, contrariamente à maioria dos das outras, tinha integrado na habitação, nem sequer ao lado, o palheiro onde guardava o seu gado. Uns tinham os seus palheiros na Assomada, outros na Fontinha, um na Tronqueira, existindo apenas um único palheiro de vacas na rua Direita, mas separado da casa onde vivia o seu dono, curiosamente no local e no edifício onde actualmente se situa o snack-bar “Costa Ocidental”. Notava-se também que a “grandiosidade” dos edifícios ia decrescendo à medida que se afastavam da igreja. A existência de palheiros de gado quer isolados quer no rés-do-chão da própria habitação, só se verificava logo no início de cada uma das restantes ruas: na Assomada, na Fontinha, nas Courelas, na Tronqueira e na Via d’Água. A partir daqui, os palheiros de gado seguiam-se em catadupa, por todas as ruas, em flagrante contraste com a rua Direita.

Outro facto sintomático e dissimétrico era o de na rua Direita morarem, as pessoas consideradas mais importantes, “os senhores Fulano e Sicrano”, cuja prole era designada por “filhos ou filhas do senhor ou da senhora…” enquanto nos arrabaldes da freguesia, ou seja, na Assomada, Fontinha, Alagoeiro e noutras ruas e lugares, moravam, salvo raras excepções, os “Ti’Antonhos”, os “Ti’Aninas”, os “Sapateiros”, os “Manéis Brancos”, os “Grotas”, os “Chingados” e os “Josés das Mariquinhas”, etc, etc, sendo os seus descendentes tratados displicentemente pelos “monços do...”. Eram ainda os moradores daquela artéria que regra geral e em primeiro lugar eram escolhidos ou se impunham por eles próprios, para cargos de responsabilidade na freguesia, como presidente de Junta, cabeças das festas de Espírito Santo e do Fio, ou eram designados para as comissões das festas, para dirigir a Corporativa, ou os que vestiam opas vermelhas para levar o pálio nas procissões do Santíssimo ou o andor nas da Senhora da Saúde.

Era também na rua Direita que se situavam todos os estabelecimentos comerciais da freguesia, num total de seis: quatro mercearias e dois botequins. Era ainda na rua Direita que morava o pároco, que se situavam as duas casas de Espírito Santo e os Correios, sendo, curiosamente, a única rua da freguesia onde havia um chafariz com duas bicas, embora os seus moradores não suplantassem em número os da Fontinha, Assomada, Tronqueira ou Via d’Água, onde os chafarizes tinham apenas uma torneira.

Era ainda e apenas na rua Direita que passavam as procissões, para baixo e para cima, desde o cimo da Via d’Água até à Praça. A única excepção era a das “Rogações”, nas têmporas de Setembro.

Tudo isto lhe concedia uma excessiva excelência ao ponto de até aparecer como protagonista em representações teatrais e ser cantada por poetas populares, que lhe faziam versos, como os que a seguir se transcrevem:

Rua Direita em que eu hoje moro,
É ela que enfeita a Fajã que adoro.
Novos e velhinhos tem que a passar
E até os parezinhos que vão a casar.

Passam nela namorados,
Sempre contentes, sorrindo.
Passam os sonhos dourados
Das almas que vão sorrindo.

Estas dissimetrias físicas, humanas, económicas, sociais e até religiosas com é óbvio provocavam algumas marcas ou estigmas entre a população, as quais, de uma forma ou outra, se repercutiam e consubstanciavam em pequenas mas frequentes quezilas, maus-olhados, quebrantos, rogar pragas, discussões, aparecimento de fantasmas e até mexericos.

Carlos Fagundes

Este artigo foi (originalmente) publicado no «Pico da Vigia».

1 comentário:

Anónimo disse...

A burguesia, no sentido literal do termo, só existiu nos Açores em Angra, Horta e Ponta Delgada.
A nobreza existiu sempre em Angra e Ponta Delgada e, na Horta, mais recentemente depois do período liberal.
A freguesias e vilas dos Açores eram (e são) dominadas pelos terratenentes locais e por um ou outro comerciante.