sexta-feira, 10 de junho de 2011

Naufrágio do Slavonia foi há 102 anos

Até meados do século XIX, as únicas embarcações autorizadas a fazer o transporte do correio inglês - o Royal Mail - eram os veleiros do Post Office, a instituição que tinha como incumbência fazer chegar a todos os pontos do Império Britânico a correspondência que o fazia movimentar.

Com advento da era do vapor tornou-se financeiramente incomportável para o Post Office a aquisição de novos navios, sendo concedidas a privados várias licenças de transporte de malas de correio. Estas licenças - ao abrigo das quais floresceram as grandes companhias de navegação dos finais do século XIX, como a Cunard, a P&O e a White Star - eram apenas atribuídas aos paquetes mais rápidos (que passavam a poder usar o prefixo R.M.S. - Royal Mail Ship). Um destes navios viria a terminar a sua carreira nas nossas costas, de uma forma trágica.


O R.M.S. Slavonia

Construído pelos estaleiros James Laing, em Sunderland, e baptizado Yamuna, este navio foi lançado à água a 15 de Novembro de 1902, tendo sido dado por concluído a 20 de Junho de 1903. Adquirido pela British Indian Steam Navigation Ltd, o Yamuna efectuou uma série de carreiras entre a Inglaterra e a Índia, transportando correio, carga e passageiros.

A sua lotação original permitia o transporte de 40 passageiros de 1ª classe e de 800 de classe ordinária. O paquete arqueava 10.606 toneladas brutas, tinha 160 metros de comprimento, duas máquinas a vapor alimentadas por 6 caldeiras com 18 fornalhas e era propulsionado por dois hélices que lhe conferiam uma velocidade média de 13 nós.

Cedo a British Indian Steam Navigation compreendeu que possuía um navio sobredimensionado para as tarefas que desempenhava. Com apenas cinco meses passados sobre a sua viagem inaugural, o Yamuna foi adquirido pela Cunard Steam Ship Co. Ltd. De regresso aos estaleiros o paquete sofreu transformações que lhe permitiram um aumento da capacidade da 1ª classe para 70 passageiros de maneira a que o navio, agora remodelado, pudesse vir a ser competitivo na carreira do Atlântico Norte.

Esquecendo-se do velho adágio marítimo que afirma que renomear navios é sinónimo de má sorte, a Cunard rebaptizou a sua nova aquisição com o nome de uma região de maior afluxo de emigrantes: Slavonia. Juntamente com um seu congénere, o Pannonia, o transatlântico passou a efectuar cruzeiros mediterrânicos de Inverno, transportando de Verão emigrantes da Europa para os Estados Unidos e passageiros de 1ª e 2ª classe de Nova Iorque para Liverpool.

Foi no términus de um cruzeiro deste género que o Slavonia rumou em direcção à Europa, numa quinta-feira, 3 de Junho de 1909. O navio de 225 tripulantes embarcou, na sua última viagem, 272 passageiros de 3ª classe e 100 de primeira classe com destino a Trieste, tendo partido de Nova Iorque com 597 pessoas a bordo.

A sua rota - que deveria passar a cerca de 160 quilómetros a norte da ilha do Corvo - foi então expressamente alterada pelo comandante, o tenente naval na reserva Arthur George Dunning. Esta alteração deveu-se ao pedido escrito que os passageiros da 1ª classe lhe fizeram chegar - em que lhe pediam o favor de alterar a rota de maneira a que pudessem observar as ilhas dos Açores.

De maneira a satisfazer os seus passageiros, o comandante Dunning planeou rodear a ilha das Flores, pelo sul, a cerca de 6 milhas náuticas da costa e só então prosseguir na sua rota original. Estas boas intenções foram defraudadas pelo forte nevoeiro que se abateu sobre o navio, na noite de 9 de Junho, e pela forte corrente que, provinda do Norte, o desviou inadvertidamente, entre o meio dia e as duas horas da manhã do dia 10.

Às 2h30 da madrugada, os passageiros da 1ª classe viram, finalmente, satisfeito o seu desejo: movido a toda a força das máquinas, o Slavonia entrou proa adentro pela costa do Lagedo, junto do ilhéu da Baixa Rasa, a cerca de 1 quilómetro da Ponta dos Fenais. De início, com a popa ainda emersa, o fogo a arder nas fornalhas das caldeiras e a luz eléctrica ainda operativa, o posto de radiotelegrafia - uma novidade para a época - emitiu um S.O.S.. O pedido de socorro foi captado pelo paquete germânico Prinzess Irene e pelo navio Batavia, da empresa rival Hamburg-Amerika Linie, que imediatamente se dirigiram para o local do naufrágio.

Entretanto, no Slavonia, a agitação do mar causou o colapso do compartimento estanque da ré levando a popa a mergulhar progressivamente no mar. A água chegou finalmente às caldeiras. Às 8 horas da manhã, o fogo das fornalhas apagou-se irremediavelmente.

O Batavia tinha já ancorado nas Lages e preparava-se para embarcar a maioria dos passageiros para mais tarde os desembarcar em Nápoles. As operações de desembarque processaram-se ordenadamente quer através dos escaleres dos transatlânticos envolvidos quer através de um cabo vaivém passado entre a costa e o Slavonia.

A 10 de Junho saiu do porto da Horta, pelas 16 horas, o navio Funchal. No mesmo dia, pelas 8 horas da manhã, partiu também, do porto de Ponta Delgada, o rebocador Condor, ambos em direcção às Flores, de modo a tentarem safar o navio do seu local de encalhe. Entretanto, o comandante Dunning, abalado pela perda do navio - que comandava interinamente, visto ter pedido a reforma em Nova Iorque, alegando um estado de saúde precário - tentou várias vezes suicidar-se, no que foi impedido pelo telegrafista do navio.

Com os passageiros e a maior parte da tripulação embarcada e a bom recato, permaneceram apenas na ilha o comandante Dunning, o imediato J. Anderson, o 1º engenheiro Davies, o 1º comissário W. Pitts e um carpinteiro. Até aquela altura apenas uma parte da bagagem se tinha conseguido salvar pela proa e todos os esforços do rebocador Condor para safar o navio foram debalde. A 16 de Junho a seguradora Lloyd’s declarou a perda total do navio.

No dia 20 de Junho chegou ao local do sinistro o rebocador Ranger, enviado pela companhia seguradora. Este navio, pertencente à empresa de salvados marítimos Liverpool & Glasgow Salvage Association, vinha dotado de mergulhadores que procederam à recuperação de mesas, cadeiras, velames, cordas, lingotes de cobre no valor, à época, de 1800 contos e de óleo no valor de 24 contos.

A carga de café, o cobre restante e três automóveis ainda hoje lá estão, estimando-se, na altura, os prejuízos em cerca de 15 000 contos. A praia encontrava-se vigiada pela Guarda Fiscal visto que, nos primeiros dias do naufrágio parte da carga - onde se incluía uma mala do correio com valores declarados - tinha sido desviada pelos naturais da ilha (aliás, ainda hoje se encontram artigos do Slavonia espalhados pelas habitações das Flores).

Concluida a operação de salvamento, o comandante e o imediato partiram para a ilha Terceira onde foram recebidos, a 30 de Julho de 1909, por Vieira Mendes, agente da Cunard Line para os Açores. Já em Londres, o capitão Dunning foi levado a tribunal marítimo para apuramento das causas do naufrágio.

Consta da sentença que o encalhe e a consequente perda do Slavonia foi provocado por erro de julgamento do seu capitão, por este ter estimado uma rota tão incerta a uma velocidade tão elevada em tais condições climatéricas e tão próximo de terra, e por este ter feito confiança em demasia em duas leituras de bússola, manifestamente erradas, que admitiu não ter sido ele próprio a determinar. O Tribunal, em consideração pelo seu trabalho anterior, que foi excelente, e pelos denodados esforços que promoveu para salvar vidas, logo após o desastre, coíbe-se de lhe retirar a sua licença, mas repreende-o severamente e avisa-o para ser mais cauteloso, de futuro.

Do lado português, a tragédia também não passou despercebida. A imprensa da época recriminou a entidade governativa de então por não ter procedido à finalização do farol que dominava o local do naufrágio e que apenas carecia das máquinas e da lanterna. Por ironia do destino, uma semana apenas após o naufrágio, chegou aos Açores, no rebocador Bérrio, o capitão de mar-e-guerra Schultz Xavier que trazia por missão a conclusão dos faróis das Lages, dos Rosais, do Topo e da Praia da Graciosa.

Após uma curta inspecção ao farol da Serreta, na ilha Terceira, prosseguiu para as Flores, o homem que, por se atrasar uma semana, causou a perda do maior navio que alguma vez naufragou nos mares dos Açores.


Texto da autoria de Paulo Monteiro, disponível no sítio do Centro de conservação da Arqueologia Marítima, da Universidade do Texas.
De relembrar também outros naufrágios nas costas florentinas: o galeão espanhol Nuestra Señora de las Angustias y San José, naufragado ao largo da baía da vila das Lajes em 1727; a barca Brillant naufragada no sítio da Quebrada Nova (costa oeste da ilha das Flores) em 1899; e a barca francesa Bidart que naufragou no lugar da Cachoeira (na freguesia da Fajã Grande) em 1915.

Saudações florentinas!!

2 comentários:

Anónimo disse...

Hoje, arribam nas Flores outros "naufragos".

Anónimo disse...

Este artigo é muito importante tanto para a juventude como adultos que não sabem o que se passou na nossa Ilha no século passado, ficam a saber um pouco mais da nossa Hestoria.